quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Registro de uma viagem (*)

Acabo de regressar de um “outro mundo”, onde o espaço e o tempo possuem uma outra dimensão. Ali, as horas são mais longas e as medidas se encompridam como se os relógios passassem a girar lentamente e o mundo houvesse crescido vários centímetros.

Isto se deu em 1972 e a medida em que avançavamos, pela estrada Belém/Brasília, deixando para trás os quilômetros, meu irmão Hernani e eu, sentíamos que estávamos mergulhando num mundo diferente, que tinha a capacidade de marcar no rosto dos homens, as linhas fortes da audácia e da decisão.

O asfalto começou a minguar a partir da cidade de Ceres, no estado de Goiás e a estrada passou a ser apenas uma linha vermelha rumando para o norte. De quando em quando, uma placa fria e impessoal, nos lançava ora para a direita, ora para a esquerda, com uma simples palavra: DESVIO. Isto significava longos quilômetros de atalhos incríveis, submersos em nuvens de poeira, capaz de causar inveja às tormentas que açoitavam a superfície de Marte.

Para evitarmos o risco de sermos esmagados pelas imensas “patrols”, “bulldozeres”, “ônibus”, “caminhões com inflamáveis”, “carros pipas”, “carretas conduzindo gado” e sei lá mais o que, muitas vezes era necessário andar-se com os faróis acesos em pleno dia, dentro daquele mundo fantasmagórico de poeira.
Os “hotéis” passavam a ser cada vez piores e os “restaurantes” cada vez mais imundos.

À primeira noite passamos em Uruaçú, um lugarejo ordinário. Na segunda noite passamos em Gurupi e a terceira em Araguaina, todas no estado de Goiás. Nesta terceira localidade nos hospedamos em um hotelzinho simpático, onde conseguimos miraculosamente um apartamento com chuveiro, ar refrigerado e refeitório.

Lembro que nossa chegada em Uruaçú foi até certo ponto engraçada, pois devido já estar anoitecendo, tinha-se a impressão de que chegávamos em uma cidade construída dentro de uma nuvem de poeira. Há metros de altura se elevava àquela densa nuvem, fazendo as luzes dos carros que se movimentavam na estrada da cidadezinha, formar uns imensos hallos que lhes centuplicavam o tamanho. Tive a impressão de que Uruaçú não seria mais encontrável quando regressássemos dai a uns 20 dias. Felizmente mais para dentro da cidade, a poeira estava mais dispersa e podíamos nos orientar melhor.

Parecia que não chovia há meses naquela região e fazendo parceria com a poeira, densas camadas de fumaça, proveniente das queimadas de centenas de hectares de “cerrado”, tornavam o sol uma bola vermelha no céu.

Em conseqüência da vagarosidade do transito nos “desvios”, os mesmos sempre apresentavam um movimento maior de veículos no transito, engrossado pelas caçambas que movimentavam terra e cascalho para a pavimentação da estrada em andamento. Ai então que os riscos de abalroamento aumentavam.
Felizmente passamos incólumes em nosso carrinho (um corcel), até atingirmos a transamazônica, há muitos quilômetros de Brasília.

A partir de Araguaina, o trânsito diminuiu e com ela aquilo que convencionamos chamar de “pontos de apoio”.

Ao entrar na transamazônica, à nossa frente tínhamos apenas a perspectiva de floresta imensa ladeando a estrada e muito espaçadamente uma casinha rústica de algum colono.

Os primeiros quilômetros à partir da Belém/Brasília, foram simplesmente irritantes, pois o leito da estrada se assemelhava a uma chapa enrugada e imprimir uma velocidade acima de 40 Km, equivaleria a correr o risco de sofrer um deslocamento de retina ou perder uma preciosa obturação dentária, tal a precipitação a que ficávamos submetidos. Eram as famosas “costeletas” das quais já havia ouvido falar mas ainda não experimentara. Pulando na crista daquelas ondas de terra, nem sempre era fácil manter o carro na estrada, mesmo com a baixa velocidade. Enfim chegamos a um trecho melhor, sem contudo livrarmo-nos das “costeletas” que ora aqui, ora ali, nos infernizava a viagem.

O trecho entre Belém, Brasília e Marabá é de 250 Km, sendo que no quilômetro 120 tivemos que atravessar o Rio Araguaia em balça do DNER. A travessia é boa e gratuita.

Enquanto esperávamos a balsa no rio Araguaia, tomamos o nosso primeiro banho de rio, onde as águas são claras, porém às margens naquele trecho são atoladiças e a praia é estreita e feia.

Eram cerca de 13:00 hs quando embarcamos na balsa. Deu-se ai uma cena divertida: o piso de ferro estava quentíssimo e mesmo calçado não se suportava ficar com os pés sobre o piso. Para nos livrar daquela assadura nos pés, resolvemos sentar-nos em uma espécie de corrimão que ladeia a embarcação. Quando a balsa estava para largar, subiu um colono conduzindo amarrado, dois cães, um tanto magros e feiosos. Os pobres animais começaram logo a sentir os efeitos da chapa quente de ferro escaldante em suas patas e iniciaram uma espécie de “dança frenética”, em que as quatro patas marcavam um acelerado movimento de descida e subida em ritmo louco. Os pobres animais assim que avistaram a sombra de um caminhão recém colocado na balsa, buscaram-na sôfregos, julgando que ali encontrariam algo mais frio. Foi ai que um dos cães teve a idéia de aliviar os pés, sentando-se. Aconteceu o pior! Um pulo e uma cabeçada no “chassis” do caminhão, acompanhado de um ganido alto, foi à indicação segura de que uma parte mais sensível do animal havia sido assada.

Do Araguaia até Marabá são 130 km. É uma estrada razoável, com trechos onde se podia correr até 80 km por hora, sem qualquer risco.

Marabá decepcionou-nos! Uma cidade suja, feia e parecia abandona. Pelos anos que já existe, era de se esperar algo melhor. Aqui ouvimos muitas histórias envolvendo mortes violentas e falava-se em grupos terroristas, fortemente armados na floresta.

Só de regresso a Brasília foi que soubemos da célebre “guerrilha de Xambioá”.

Nossa próxima parada foi em Altamira a 593 km de distância. Um pouco melhor que Marabá mas longe de oferecer comodidade ao viajante. Chegamos já de noite e o primeiro hotel que achamos foi o “Hotel Altamira” e nele nos hospedamos. No dia seguinte procuramos o acampamento da firma: “Queiroz Galvão”, para o qual tínhamos uma carta de apresentação, onde fomos bem recebidos e nosso carro até mereceu as honras de uma ducha para aliviá-lo da poeira, além de ter o cano da descarga remendado, livrando-nos assim de um barulho ensurdecedor.

Pernoitamos nesse acampamento e só no dia seguinte reiniciamos a nossa viagem. Isto se fez necessário para poder nos recuperarmos de um dano intestinal causado pelo jantar em Marabá. Partimos as 5:30 hs da manhã seguinte e alcançamos o entroncamento com a estrada Santarém/Cuiabá, cerca de 11:30 hs, depois de percorrermos 320 km.

No entroncamento havia uma cidadezinha em construção por parte do governo. Parecia ser um lugar agradável e foi a melhor coisa que vimos desde a Belém/Brasília. Segundo nos informaram, esse lugar era Rurópolis, uma espécie de “capital” para as diversas agrovilas que o INCRA estava construindo ao longo da estrada.

De Rurópolis rumamos para Santarém, onde medimos 215 km, pela estrada Santarém/Cuiabá, a qual estava sendo construída pelo exercito. O trecho que percorremos estava bom, a pista era larga e oferecia boas condições de tráfego. No caminho paramos no Igarapé do Mojú, onde tomamos um demorado banho em suas águas cristalinas.

Chegamos à Santarém as 14:30 hs, já pela estrada Santarém/Curuá-Una. O calor estava abrasador e a mim pareceu irreal entrar naquela cidade onde vivi longos anos, guiando um carro que uso em Brasília. Cansados e com medo do preço do “Hotel Tropical”, hospedamo-nos no “Hotel Nova Olinda”, antigo Uirapuru, bem em frente à cidade. Um outro banho, um almoço e uma sesta ligeira, retemperaram nossas forças.

Santarém está melhor e pior a um só tempo. Melhor porque tem mais movimento, ligada ao resto do país por telefone e tudo indica que o seu futuro será esplêndido. Pior porque está mais esburacada, suja, mais confusa e despersonalizada. Já não é mais aquela cidade gostosa, onde todos conheciam todos e pelas esquinas em noites de luar se faziam serestas. Agora já se ouve falar em maconha, “bolinhas”, etc. A prostituição campeia! A Santarém do passado morreu para que surja a nova Santarém, que dentro de alguns anos será o maior entreposto comercial do Baixo Amazonas. Será o porto de escoamento de duas estradas, ponto turístico sem rival às margens do Rio Tapajós. O seu destino é crescer, e como todo progresso material traz mazelas, por muitos anos Santarém será uma cidade mazelenta, até adaptar-se à sua nova condição. Felizes daqueles que a conheceram no passado!

Nossa permanência em Santarém foi estritamente necessária para preparar um motor de popa num barco, comprar mantimentos e seguirmos rio Tapajós à dentro. Gastamos dois dias nessa arrumação e só as velhas amizades tornaram possíveis esse tempo “record”. O fato é que dois dias depois, às 10:30 hs. estávamos de partida para o rio que era o nosso destino.

Nossa primeira parada foi na “Praia da Maria José”, onde tomamos o banho mais gostoso do mundo e almoçamos “corned beef” com ovos mexidos. Uma sesta na areia alva e fina sob a copa de uma árvore, foi realmente o que marcou o inicio de nossas férias.

Sinhuca, um velho amigo, foi o nosso cozinheiro, copeiro, arrumador e contador de estórias. Convocado logo à nossa chegada, atendeu-nos com alegria e em seus olhos, lia-se a felicidade de poder acompanhar-nos naquele passeio. É um dos melhores amigos que tenho, rijo, seco, vermelho e se parece tanto com um “galo velho”, que sempre pela madrugada eu esperava vê-lo bater as asas e soltar o seu canto solar. Raramente se encontra hoje em dia um homem como Sinhuca, que já andou mais da metade da Amazônia e possui uma rara vocação para arrumar as coisas. Nada esquece e nada perde. O que mais me admira naquele homem singular, é a capacidade de afeiçoar-se às pessoas. Por um favor que lhe fiz há muito tempo, julga-se até hoje preso a mim, como se eu de fato fosse o seu senhor e não o seu amigo. Creio que os Sinhucas hoje em dia não nascem mais. Só não o tenho comigo para o resto da vida, porque não me arriscaria a privá-lo do seu mundo e ele fatalmente morreria de tédio em uma cidade como Brasília. Assim, resta-me apenas a esperança de poder revê-lo ainda, tantas vezes quantas forem possíveis. Ele é meu amigo e eu sou seu amigo!

Após a primeira sesta na alva areia da praia da Maria José, resolvemos atravessar para a outra margem do rio Tapajós, onde existem umas ilhas e tentar apanhar algo para o jantar. Nada pescamos e os tiros que arriscamos, foram infrutíferos nas aves de nome Nanaí, pois são muito ariscas.

O sol morria cheio de cores maravilhosas no céu, quando resolvemos voltar para a terra firme. Uma tempestade se formava para os lados do nordeste, porém não parecia ameaçar-nos. Atingimos a outra margem já com a noite fechada, sem qualquer contratempo e nosso objetivo era encontrar um lugar adequado para o nosso pernoite. Uma luz atraiu-nos e para lá nos dirigimos. Era o lugar ideal e dois pescadores ali esperavam que o tempo melhorasse. Há poucos metros havia uma casa desabitada, que vim saber que pertencia a um grande amigo meu. Foi fácil abrir a casa e instalarmo-nos em seu interior, onde passamos uma noite agradabilíssima, enquanto lá fora chuviscava.

Despertamos cedo e logo partimos rumo a famosa Ponta do Cururu, local onde o rio Tapajós, que até então ocupava o rumo leste-oeste, se volta decididamente para o sul. Próximo a essa ponta, pescamos alguns Tucunarés que nos garantiram um saboroso almoço, seguido de uma longa sesta, até o que sol esfriasse um pouco mais e pudéssemos seguir nossa viagem. Nessa noite pernoitamos a céu aberto, com as redes estendidas sob as árvores e tendo a proteger-nos do vento da madrugada, as encostas de um barranco acolhedor. Creio que essa noite ao relento, foi a mais bem dormida, pois não tivemos ameaças de chuva e nem sentimos frio.

Chegamos a localidade de Nuquini, um dos nossos objetivos, mas ali não estava nada bom, pois havia muita formiga e as árvores não ofereciam boa pousada. Tínhamos, contudo, que permanecer naquele local à espera de um pescador amigo, que ficava de vir juntar-se a nós, como de fato o fez. Esse pescador era o Marçal, que em verdade seu nome é Alberto mas que por motivo qualquer só é conhecido por esse nome. Marçal é outro amigo e companheiro. Ele e sua canoa, já fazem parte da paisagem santarena e com certeza, vive mais tempo no rio do que em terra. Talvez seja difícil encontrar alguém que goste mais de pescar do que ele. Diz que é carpinteiro, porém duvido muito que nos últimos 10 anos, tenha exercido a profissão ao menos por algumas horas. Sua vida é no rio, tanto nas horas quentes do dia, como nas caladas da noite.

Com a chegada do Marçal, a nossa equipe ficou completa. Agora era tocar para a localidade de Urucurituba. Passamos pela cidade de Aveiro, onde saltamos e eu me dei ao luxo de visitar o prefeito. Meus trajes eram “excelentes” mas assim mesmo fui recebido e troquei idéias com aquela autoridade sobre o município, colocando meus préstimos em Brasília à sua disposição. Afinal de contas, Aveiro é o município onde nasci e meu pai foi prefeito por mais de uma vez. Encontramos outros conhecidos e relembrei “tempos idos”.

Nossa próxima parada foi em Urucurituba. Bem! aqui preciso deter-me um pouco.

Era o dia 3 de outubro. Uma tarde “morena” e chuviscosa que enchia meu coração de nostalgia. Contornávamos a Ilha do Pairá e ali mais adiante, as lindas e seculares “Palmeiras Imperiais”, assinalavam o lugar de meu nascimento e de minha infância.

Há 134 anos atrás, nosso bisavô Alberto da Silva Franco, ali chegara e a escolha do local fora determinada pelo “destino”. Um grande peixe tucunaré, saltou para dentro de sua igarité e ele tomou esse fato, como um feliz augúrio e mandato do céu, para que ali ele fixasse sua residência.

Nesse longínquo ano de 1836, o “Velho Alberto”, subia o rio sem saber que local escolher para fixar-se e o peixe, saltando em sua embarcação, era o aviso inconsciente que talvez esperasse. Naquele momento, relembrei o episódio que me havia sido relatado há muitos anos atrás.

Aportamos junto ao banheiro de rodas, na praia deserta. A “Casa Grande”, solitária estava ali adiante, mergulhada em profundo cismar. Ninguém era visível em parte alguma e isso me entristeceu. Depois de 29 anos eu regressava e não havia ninguém ao menos para falar. Percorri, submerso em velhas recordações, o caminho que me levava até a casa vazia, silenciosa e fechada. Na sua face centenária, havia apenas o mutismo das esfinges indecifráveis. Nem bem, nem mal, apenas indiferença, como se ela adormecida como uma velha decrépita, não esperasse mais ninguém. Talvez, quem sabe, tivesse cansado de esperar por aqueles que ela vira nascer e crescer em seu seio e, depois partirem para lugares longínquos, sem jamais recordarem o quanto de amor ela lhes havia dispensado. As paredes carunchosas e mal cuidadas, pareciam acusadoras. As águas que gotejavam das telhas enegrecidas pelo tempo, pareciam pequeninas lágrimas vertidas de pálpebras roídas pelos anos. Esse é o triste fim das coisas e homens! A velhice as atira para um canto e se tornam um estorvo para os que desejam “gozar a vida” e ninguém volta para revê-los e aquecê-los. Com a velha “casa grande”, sucedeu talvez assim! Mas... eu voltei e gostaria que ela soubesse, que em meu coração ela sempre existiu, embora nem sempre eu me apercebesse disso.
Por fim, apareceu uma menina e ficamos sabendo que meu tio Luiz, estava no curral tratando de uma vaca doente.

Fomos para lá e a cada passo que dava, era um mergulho no passado. Ali estava o “chiqueiro dos bodes e dos bezerros”, “o velho curral”, no mesmo lugar. Os tamarineiros também estavam ali e meus pés descalços, pisavam uma grama mais velha do que eu. É melhor parar aqui sob pena de não poder continuar a escrever...

O Urucurituba morre aos poucos, lenta, silenciosamente e aquele paraíso volta ao que era.

Dos “antigos moradores” restam poucos e seus filhos se foram...

Ao rever o Firmino Furtado, já velhinho, e ao afagar-lhe os cabelos, já ralos e grisalhos, só pude chorar com ele, aconchegado ao meu peito. Sua fisionomia pouco mudou e seu coração de criança ainda o faz chorar de emoção.

Antônio Firmino, outro velho amigo, com suas feições incaicas, também ainda está lá.

A Constância! Ah! A Constância! Dobrada pra frente pelo peso dos anos, mais parecia um “Velho Jacamim”. Já não dança mais o “coco”! Seus companheiros há muito já se foram e ela, mergulhada em sua surdez, atravessa os anos sem saber quantos tem. Sua carapinha toda branca e seus olhos com pouca luz, ainda refletiam contudo o amor que ela nos tinha.

Na varanda da casa grande, está ainda a mesma mesa dos tempos do “Velho Diogo”. Marcada pelos anos com tantas cicatrizes, mais se assemelha ao rosto encarquilhado de uma velha índia. No seu corpo que há dezenas de anos passados, deveria ter sido luzidio, macio e pouco a pouco foram sendo impressas as marcas indeléveis que agora ostenta. Opaca, sólida, cor de palha velha, é mais um “ser” indiferente e cansado, esperando, esperando e esperando... sabe Deus o quê...

Chegou por fim a vez de procurar as ruínas da igrejinha. Fiz isso no dia seguinte. Cheguei ao seu lado quando o sol já descambava no horizonte e o que vi, encheu-me de ternura. As velhas paredes ainda lá estavam, sustentadas de pé pelos possantes braços de um apuizeiro. A árvore havia enlaçado com suas raízes aéreas, todas as paredes, como se as aconchegasse ao peito com seus braços. A planta viva e exuberante, teceu nas paredes uma rede protetora e amorosa, impedindo-a de cair.


É difícil imaginar-se a beleza do quadro! Braços robustos sustentando as paredes axaustas, como se as acalentasse. Sem querer veio-me à mente a “Imagem da Pietá”, de Miguel Ângelo, que eu vira em Roma: a Virgem com o seu Filho ao colo. E foi assim relacionada em minha memória com as ruínas da igrejinha, já morta e sustentada pela árvore como u’a mãe. E assim como Maria, parece mais jovem que o Filho naquela escultura, da mesma forma a árvore em sua juventude e viço, sustenta as ruínas da velha e cansada igreja.

Diante daqueles restos de parede, minha alma voou mais uma vez ao passado e em minha memória se retrataram o chão de tijolos vermelhos, sobre os quais se projetava a luz colorida do sol ao atravessar os vidros azuis, vermelhos, verdes e alaranjados, que compunham o arco superior das janelas. No fundo onde era o Altar Mor, e ficava a imagem de São Pedro, um viçoso arbusto, ali entronizado arrogantemente por si mesmo, havia substituído a imagem.

Num instante chega à mente muitas recordações em tumulto:

O velho Maximino era alto, magro, com os tendões do pescoço esticados, perecendo “sapopemas” dos troncos de velhas sumaumeiras. Com seu grande chapéu de feltro e abas largas, carregava em suas mãos esquálidas uma espécie de bengala rústica, super polida com folhas de “meraximbé” (uma espécie de árvore com folhas tipo de lixa, comuns nos campos cobertos do Urucurituba). Era pernóstico e gostava de falar difícil, onde invertia o sentido das palavras e inventava novos termos.

O velho Mariano, corpo envergado pra frente, pálpebras semi-serradas, os cabelos sempre em desalinho e as calças quase caindo pelas cadeiras, descendo ao anoitecer para o rio. Ia entoando um canto misterioso, com voz cavernosa, o qual enchia minhas noites de pavor, onde os caboclos diziam-me que ele estava chamando o “bicho do fundo do rio”.

Dona Honória, com seus pães gostosos feitos no grande forno de barro e distribuídos pelo garoto Canuto, um pretinho safado e cujas transgressões eram punidas por meu pai.

No silêncio daquela tarde, ouvindo os trovões rolarem ao longe, voltei a ser criança, quem sabe... pela última vez... Depois vieram as realidades. Tristes realidades: colégio, saudades, amores, lutas, aspirações, frustrações, sonhos, doenças, cansaços, amargura, o mundo... Há! O mundo com seus egoísmos, suas maldades, suas mentiras...

Como seria bom voltar! Sim, voltar a ouvir a ladainha rezada na sala do canto da casa grande, sentindo aquele cheiro de roupa limpa dos caboclos, misturado ao cheiro da murtinha, dos jasmins e das velas de estearina, escapando pelas janelas e impregnando minha alma, ainda jovem e inexperiente, inteiramente voltada para a natureza.

Lembrei-me então de um fato singular: Dona Izabel, falava grosso e cantava fino e seu irmão Lázaro, falava fino e cantava grosso. Descobri isso atônito em uma dessas ladainhas e até hoje não explico o fenômeno.

Os dias que passamos no Urucurituba, transcorreram como um sonho. A mente parou e o mundo lá fora deixou de existir.

Às vezes, olhando da varanda da frente para uma velha cuieira, plantada no barranco próximo ao rio, onde todas as tarde, encarrapitado no galho mais alto da cuieira, parecia-me ouvir o velho papagaio do vovô Diogo, que era um veterano tripulante das igarités, o qual havia atravessado incólume, os traiçoeiros rebojos e funis das cachoeiras de: Pimental, Cabolino, Urubuquara, Baruré, Fumaça e outras tantas cachoeiras e travessões do Tapajós, nos áureos tempos da borracha, a comandar as manobras de uma igarité na cachoeira, onde ele gritava: “Pega a proa!” “Pega a proa!” “Olha o rebojo” “Cuidado!” “Pega a proa, pega à proa caboclo!” e assim, horas a fio o velho louro sofria os horrores dos rebojos fatais das cachoeiras onde se partiram tantas igarités e se perderam tantas vidas.

Chegou a hora do regresso! Era domingo! Prefiro não falar nessa hora. Os poucos moradores e suas crianças, acompanharam-nos ao rio para a partida, onde eles entoaram uma “canção em louvor a amizade.”
Quase alheado, dei partida ao motor e não quis olhar para trás.

Dói muito recordar! Doeu muito deixar aquele paraíso de paz e silêncio, para regressar ao mundo da ciência, da tecnologia e do progresso.

Fiquemos aqui!



(*) Escrito em outubro de 1972, em Brasília

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